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  • Foto do escritorHigo Horta

Sabotage: há 20 anos morria o rapper e nascia o mito

Assassinado em 2003, músico paulistano trouxe o swing para o rap, deixou obra incontestável e segue inspirando gerações.

 

O Fiat Tipo de cor cinza subiu em alta velocidade a av. Dom José Gaspar, em Belo Horizonte, com o volume do som nas alturas. Eu aguardava na esquina para embarcar de carona naquele carro, já um pouco constrangido por conta dos pedestres que notavam, a contragosto, a batida grave que fazia o automóvel e os tímpanos tremerem. O motorista, Luan, com quem eu dividia apartamento na época, parou.


- Cola aí, mano - ele gritou - estamos indo pro mercadão.


O lugar o qual ele se referia era o Mercado Central, um dos pontos turísticos da capital mineira. Luan era de São Paulo, e naquele dia recebia uns amigos de lá que lhe visitavam. Eu, como bom mineiro, faria as honras de apresentar a cidade aos turistas.


Era meados de 2005, e ainda envergonhado entrei no carro. No som, que fazia a lataria do Tipo pulsar, tocava Dama Tereza 🎧, música de rimas rápidas, quase que incompreensível ao ouvinte de primeira viagem, que funde o rap ao samba. Foi ali, naquela tarde incomum, que eu conheci o Sabotage.


Do tráfico para a música


Mauro Mateus dos Santos nasceu em 3 de abril de 1973 na favela do Canão, um enclave do Brookling, bairro nobre e moderno da capital São Paulo. Desde pequeno, nunca se furtou à rima. Na infância era bom aluno e vivia com o seu caderno rabiscando músicas. Maurinho, como era conhecido, dizia ter “síndrome de pensar” e já se destacava no Canão como um futuro MC.


No início da juventude o gosto pelos estudos foi diminuindo e Maurinho passou a se dividir entre a música e o crime. Participava de concursos de rap, ganhava reconhecimento entre músicos, como RZO, Mano Brown e Ice Blue, mas acumulava passagens na antiga Febem. Aos poucos, Maurinho foi dando espaço para Sabotage. "Meu irmão que já morreu vivia me chamando de Sabotagem. Você trabalha no tráfico e não vai preso — isso, para ele, era uma espécie de sabotagem. Na época eu não sabia o significado da palavra. Hoje, quase oito anos depois, eu já entendo. Sabotagem é um ato terrorista", disse em sua última entrevista publicada na revista Trip após sua morte em 2003.


Nos anos 90, Sabotage se apresentava abrindo shows de Rap. Ia ficando cada vez mais conhecido e se tornava uma referência na favela onde nasceu. Contudo, a música ainda era insuficiente para o sustento. Com o tempo e o nascimento dos filhos, o envolvimento com o tráfico foi ficando cada vez mais forte. Como relata Toni C., seu biógrafo, no livro "Um bom lugar":

Maurinho assumiu a gerência de um ponto de venda de drogas, como ele resume: “Eu ando do lado bom e do lado ruim da vida”


Se quiser ler a biografia do Sabotage, a sugestão é comprar um Kindle. O livro físico não sai por menos de 500 reais. Pelo menos até o data desta publicação.



Se no Canão Sabotage era uma pessoa querida por todos, o mesmo não poderia ser dito pelos moradores da Vila da Paz, comunidade onde passou a viver no início dos anos 90. “Como artista gostamos muito do cara, mas como pessoa sem chance. Era um ótimo pai de família, mas na rua ele se transformava e botava o terror na gente”, contou um morador sobre a presença de Sabotage como liderança do tráfico na região. Ele próprio admitiu: era “terrorista”. Nessa época, Sabotage desiste da música e se afunda no crime e nas drogas.


No ano 2000, porém, uma nova oportunidade bate a sua porta. Rappin’ Hood e Sandrão do RZO o convidam para retomar a sua carreira artística. Sabotage não titubeia. A vida do crime custava caro demais e, até mesmo seus parceiros, incentivaram a largar o tráfico e se dedicar a música. “Maurinho, cê tem talento pro baguio”, diziam.


Menos de um ano depois, gravou seu primeiro e único disco com apoio dos Racionais: O Rap é Compromisso. Foi um estouro. O álbum vendeu mais de um milhão e setecentas mil cópias, sendo certificado como Diamante triplo pela Associação Brasileira dos Produtores de Discos (hoje Pró-Música). Ainda hoje, é considerado um dos álbuns mais importantes da história do rap no Brasil.


O rap me salvou, me tirou da vida do crime... e através da minha música outros também vão me ouvir e vão refletir sobre o que é viver na periferia

O Maestro do Canão


Quando entramos no Mercado Central, eu não conseguia prestar a atenção em mais nada. Dama Tereza havia dominado minha mente. A fusão do rap com o samba era algo novo, e eu nunca tinha ouvido um som como aquele. A música era uma colaboração de Sabotage ao álbum do Instituto, grupo com quem também gravou o rap Cabeça de Nego.🎧 O estilo acabou influenciando outros artistas, como o próprio Rappin’ Hood, amigo de Saboatge, e Marcelo D2. Ainda hoje, essa fusão segue conquistando gerações, como o caso do rapper Criolo.


A partir de 2001, Sabotage já era sucesso absoluto. Transformava-se de vez no Maestro do Canão, um rapper influente e respeitado. Não era para menos. Seu álbum ,"O Rap é Compromisso", era uma inovação ao explorar ritmos diversos e a contar com colaborações genuínas como a de Negra Li, Black Alien e até mesmo Chorão, do Charlie Brown Jr, na música Cantando pro Santo.🎧


Seu flow, nome dado ao estilo de cada rapper, é considerado inigualável. Em Mun Rá 🎧, uma de minhas músicas preferidas, a levada do rap é envolvida de um swing que é impossível ficar parado. Sabotage, definitivamente, levou o rap nacional para outro estágio: o tirou do casulo da própria cena e o fez ganhar o país.


Poucos artistas fizeram a indústria cultural orbitar em torno de si já no primeiro trabalho. Eu, particularmente, conhecia dois: Mamonas Assassinas e Chico Science. O terceiro era Sabotage. Ironia do destino, todos eles tiveram a carreira interrompida precocemente de maneira trágica. Mas isso é outra história.



Álbum "O Rap é Compromisso"


Do rap para as telas


Não tardou e o mundo do rap ficou pequeno para Sabotage. Além de participar da trilha sonora do filme "O Invasor", de Beto Brant, cujo o trabalho lhe rendeu prêmios nos festivais de Sundance, de Brasília e de Recife, Sabotage fez uma "ponta" como ator e ensinou o roqueiro Paulo Miklos as gírias da periferia para que ele interpretasse o malandro Anísio. O filme era o primeiro papel do Titã no cinema e quem o ajudou a encontrar o personagem foi o rapper. “Ele me contava de sua vida, de como havia conseguido ser respeitado como artista depois de deixar o tráfico e de escapar vivo de situações bem delicadas”, lembra em entrevista recente ao Estadão.


A participação gerou uma grande amizade entre ele e Miklos, mas também o gabaritou para um trabalho de maior envergadura. Em 2002 foi convidado para atuar em Carandiru, de Hector Babenco, baseado no livro "Estação Carandiru", do médico Drauzio Varella. Sabotage teve um papel importante em ajudar na preparação do elenco. Afinal, conhecia o Carandiru como poucos, já que frequentava o lugar para visitar parentes e amigos desde muito novo.


Contribuiu, sobremaneira, na preparação de Caio Blat para dar vida ao personagem Deusdete, como mostra do documentário da Globo "Sabotage: Maestro do Canão" 🎬 lançado em 2015. Interpretou o personagem Fuinha e gravou uma das músicas da trilha sonora.


Ganhou, ao final de 2002, o Prêmio Hutus, premiação do rap e do hip hop, como revelação do ano e personalidade do Hip Hop.

De improviso, Sabotage aperta a bunda de Rita Cadilac e depois se joga entre os detentos na icônica cena do filme Carandiru, de Hector Babenco.


O surgimento do mito


Na manhã de 24 de janeiro de 2003, após deixar sua esposa em um ponto de ônibus no bairro Saúde, em São Paulo, Sabotage se preparava para viajar a Porto Alegre, onde se apresentaria no Fórum Mundial Social. Não houve tempo. Ali mesmo foi alvejado por quatro tiros. Morria o rapper aos 29 anos. Nascia o mito.


"Mauro deixou de ser uma pessoa para se tornar um mito, uma entidade, uma marca que estampa camisetas, bonés, cobre paredes em grandes graffites, adesiva automóveis e caminhões que circulam nas mais remotas estradas do país. Sabotage é um estado de espírito que habita o coração e a cabeça das pessoas.", escreve Toni C., na biografia do rapper.


Sete anos depois, a justiça condenaria Sirlei Menezes da Silva pelo crime, cuja a motivação é desconhecida e ainda gera teorias. A hipótese mais aceita é de que o assassinato seria uma vingança de antigos desafetos da época do tráfico.


Em 2016, diversos músicos trabalharam para lançar o álbum póstumo Sabotage 🎧, com vozes gravadas pelo rapper nos anos 2000 e que ficaram guardadas como tesouro pelo produtor Daniel Ganjaman.


Sabotage vive e ainda hoje segue influenciando nossos rappers, como mostra a reportagem desta terça, 24, no Ecoa Uol. 20 anos depois de sua morte, sua música se prova atemporal e atualíssima. Não havia outro jeito. "(...) Sabotage personifica numa só pessoa as mais profundas mazelas sociais de nosso Brasil, como pobreza, descaso, racismo, drogas, violência, tragédia, desigualdade, entre outros amargos ingredientes.", conclui Toni. C.



Rascunho de "O Rap é Compromisso", música que dá nome ao único álbum lançado em vida por Sabotage. Fonte: http://sabotageoficial.com/


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